Sertão Teológico

SÍMBOLOS DO DESEJO NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO

INTRODUÇÃO

 

“O campo do imaginário religioso tem seu fundamento em narrativas sagradas que podem ser compreendidas a partir de categorias míticas e utópicas. A primeira remonta à origem da religião, permitindo entender o sentido da fundação dos fenômenos religiosos; a segunda abre possibilidades para se apreender migrações religiosas a partir de utopias construídas por subjetividades nômades”[1].

O conceito de imaginário é o que permite compreender origem e extensão de indivíduos ou grupos em perspectivas utópicas, em processos migratórios de cunho religioso, mediante o agenciamento de duas categorias que compõem o imaginário: O Mito e a Utopia.[2] Portanto:

O Mito é sempre a narrativa de uma criação, relatando de que modo algo foi produzido e começou a existir […] [3] cuja função primordial é acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador.[4] O símbolo, que designa a parte visível de um todo não manifesto e inseparável da totalidade do real, é composição da narrativa mítica e que recebe do homem um significado imaginário. Este homem, por intermédio do mito procura afirmar e renovar alianças com seres sobrenaturais e produzir uma sensação de amparo diante dos perigos da vida. O mito produz uma consciência mítica com as seguintes características: 1 – Assumir uma forma fantasiosa ao explicar a realidade; 2 – Assumir uma verdade intuída, sem comprovações e sem conduzir à reflexão, pois seu “alimento” são as emoções; 3 – Ser ingênua e desprovida de problematização. Tem como exemplo o fanatismo, o legalismo e a religiosidade popular. Quanto à utopia […] ela permite a compreensão da relação com o passado mítico e a esperança de uma vida futura. Seu apoio fundamental é o desejo e o símbolo, constituindo a busca por um lugar ainda não alcançado. O processo de busca permite o acoplamento de bens simbólicos que desembocam em conflitos de valores, porque os valores que o homem dá às coisas não são os valores reais delas mesmas, em sua essência.[5]

 

SÍMBOLOS DO DESEJO NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO E NÃO FENÔMENOS[6]

 

Neste universo mítico, utópico e imaginário nascem os símbolos ou representações sensoriais de uma ideia que guarda um vínculo convencional e arbitrário com seu objeto.[7] São então objetos sensíveis ou realidades que recebem a interpretação

ou significado que o sujeito lhes quer dar, segundo um sentimento que pode ser de temor, de ausência, de ansiedade, de frustração, de opressão, de vazio, ou mesmo um profundo desejo, uma neurose […]

Os símbolos entram para o campo do sagrado, do religioso. Deixam de ser “coisas comuns”, fenômenos ou realidades em si para serem algo especial e dotados de poderes e influências transcendentais. No universo mítico e utópico o homem atribui aos fenômenos ou objetos uma funcionalidade, uma afeição e finalidade. Desenvolve uma dependência deles, dá-lhes um valor que eles não tem, reverencia-os.

É aqui então onde os fenômenos viram símbolos religiosos de um imaginário religioso como resposta de uma consciência mítica onde as coisas ou fenômenos deixam de serem coisas comuns e naturais para serem símbolos imaginários com uma áurea de sagrados.

No imaginário religioso não há preocupação em estudar ou ver os objetos ou fenômenos em si ou eles mesmos conforme aparecem aos nossos sentidos e consciência, saber quem são, qual a sua essência a partir do real. Neste universo os símbolos são sagrados fabricados. No círculo do sagrado fabricado, imaginário, “tudo pode transformar-se em fonte da força e o homem carente de força”, fragilizado, busca-os, consciente ou inconscientemente. No nível do inconsciente surgem os “sonhos, muitas vezes revelações do nosso interior e reflexo do desejado”[8]. Estes, às vezes são proibidos, ao que implica em repressão e censura do inconsciente. Quanto à repressão do sujeito, alguém já disse que “a essência da sociedade é a repressão do indivíduo e a essência do indivíduo é a repressão de si mesmo”. Com a repressão instaurando-se no sujeito, dilemas na alma e aí pode haver buscas por símbolos no seu imaginário religioso os quais viram fuga, fetiche.

No imaginário religioso mítico e utópico o homem, diante da fragilidade do seu ser ou da sua alma passa a ser possuído e com isso se anula diante do possuidor, os símbolos. O homem dá nomes às coisas, atribui poder aos símbolos, dá-lhes significados especiais (Mt. 9:21). Por exemplo, “pedra é pedra, mas, se for chamada de altar passa a ser circundada por uma aura misteriosa. Pão é pão e vinho é vinho, mas com as palavras “isto é o meu corpo e isto é o meu sangue” podem passam para uma dimensão nova”, mítica, utópica, imaginária.

No imaginário religioso mítico e utópico, os oprimidos de alma constroem símbolos de esperança e lançam-se à luta. Por exemplo, os zelotes, que sempre provocaram uma libertação nacional do jugo de Roma, viram em Jesus o seu símbolo de esperança e então a sua “religião”, que leva o nome de Messianismo. É do sonho e do desejo de realização não realizado que nasce a Religião Fenomenológica.

O Imaginário religioso é elemento da Fenomenologia da Religião. Ela apresenta uma alteração no sentido do fenômeno a partir do signo o qual é a linguagem ou

pensamento mediador entre o “sujeito consciente” e o fenômeno. É aqui no signo onde tudo acontece, ou seja, o signo gera os símbolos no âmbito do inconsciente ou da ingenuidade desprovida de reflexão e crítica do sujeito. O signo altera os sinais emitidos pelos objetos, fenômenos, coisas ou realidade em si na consciência do sujeito e o faz dar-lhes outros significados abstraídos, ou seja, constituídos em partes, em sagrado e profano como assim ele os quer constituir com sua subjetividade nômade.

O homem abre-se às interferências do signo em decorrência das suas privações, carências, ausências, angústias, temores, frustrações… Tomado por desejos de realização, de sucesso, de prosperidade, de plenitude de vida, busca nos símbolos do seu imaginário religioso, encharcados de misticismo e utopia, a possibilidade para tudo isto, “a possibilidade do possível”.

Por meio do signo, os símbolos passam a ser símbolos dos desejos que além de nascerem da privação, da carência, da ausência, da angústia, do temor, da frustração […] também poderão ser produzidos pela cultura.

Uma vez não havendo realização dos desejos o signo transfere a “consciência” do sujeito para a esfera e dimensão da imaginação utópica e para a “possibilidade do possível”, produzindo uma aura de sagrado, fuga, escapismo ou “esperança mágica e fórmula do sucesso”.

Os símbolos dos desejos são sempre prejudiciais ao sujeito, alienando-o escravizando-o e tornando-o predicado porque passa a depender de sua criação, ou seja, do seu fetiche.

 

FENÔMENOS E SINAIS (NÃO SÍMBOLOS) EM OUTROS CONTEXTOS

 

Há fenômenos ou sinais que designam algo específico ou especial. Podem vir a ser sagrados e/ou especiais. Estes podem ser transformados em comuns ou ainda há comuns que se mantem comuns, eles mesmos […] não apontando para nada, destituídos de sentido religioso. Como então tratar disto evidentemente? Vejamos alguns exemplos:

  1. As doze pedras que o Senhor ordenou que fossem tiradas do meio do Rio Jordão (objetos comuns), para transformá-las num memorial aos filhos de Israel, em função das suas águas que foram cortadas (Js. 4:5-9) tornam-se sinais sagrados e especiais, pois com elas foi erguido um altar para a renovação da aliança com o Senhor Deus. Não prejudica ao homem em sua religiosidade porque não está na esfera do imaginário religioso. Também é o exemplo da cruz (madeiro), antes comum, enquanto meio de execução (Dt. 21:22-23), mas em Cristo (Gl.3:13), tornou-se especial (Cl 2:14-15).

  2. Uma flor enquanto flor… é “coisa comum” mas, “se jogada sobre uma sepultura, aí sim vira sinal especial porque passa a dar explicações, podendo ser uma confissão de amor ou afirmação de saudade”. Então, coisas comuns tornam-se sinais “acidentalmente” especiais, também não prejudicam ao indivíduo em sua religiosidade.

  3. As vestes de Jesus tocadas pela mulher que a doze anos sofria de um fluxo hemorrágico (Mt.9:20), pensando ser elas “símbolo de poder” (Mt.9:21) é o exemplo de algo comum que permanece comum, pois Jesus desmistifica a ideia de que dela tenha saído poder. Jesus certificando-se de que foi dele quem saiu poder (Lc.8:46) atribui a cura à fé da mulher (Lc.8:48). Então, na perspectiva de Jesus, “veste continuou sendo veste”, sem qualquer conotação perniciosa, doentia, alienante, prejudicial ou algo dessa natureza. No mesmo nível está a cura do cego de nascença. Ao Jesus untar os seus olhos com lodo (Jo 9:6) não atribuiu a este o poder para a cura, mas em si estava o poder (Jo 9:35-37,39). Diante do fato e da convicção não recusou ser adorado pelo ex – cego (Jo 9:38). Este, por sua vez também atribuiu a Jesus a cura e nem mesmo a pressão psicológica dos fariseus o fez mudar de ideia ou concepção (Jo 9:11,15,17,24-27) e, sem ainda conhecer a Jesus, o fez seu discípulo (Jo 9:27 – notar a palavra “também”). Então, na perspectiva de Jesus e do ex – cego, o lodo continuou sendo lodo. Nenhum destes exemplos são símbolos. São fenômenos ou sinais. São eles mesmos. Não escravizam o sujeito, não investe valores.

CONCLUSÃO

A princípio há “símbolos” que não são necessariamente símbolos, mas sinais ou objetos com designações específicas os quais não são alienantes, pejorativos, e prejudiciais ao homem em sua religiosidade ou relação com o sagrado. São objetos ou sinais essencialmente especiais por virem de Deus, sem misticismos ou utopias. Diante desses sinais o homem se encontra, se realiza sem que os mesmos anulem sua personalidade e o vazio do seu ser que é do tamanho do próprio Deus é totalmente preenchido por Ele, Deus. Não são prejudiciais ao indivíduo porque nasceram no coração de Deus. Como exemplos temos a Arca da Aliança, repleta de significados, expressando a própria presença de Deus e o Templo de Jerusalém, simbolizando a moral a de Israel. Tais sinais nunca foram antes coisas comuns, mas já nasceram essencialmente sinais não utópicos.

Quanto aos símbolos do imaginário religioso mítico e utópico são referências frente ao ausente, indicando desejos e direções. Rubem Alves afirma: “Os desejos indicam direções. Surgem muitas vezes no ponto onde fracassamos, testemunhas das coisas ainda ausentes, saudades de coisas que não nasceram. Aqui está a religião, teia de símbolos, rede de desejos, confissão da esperança, horizonte dos horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza. Com eles os homens exorcizam o medo e constroem diques contra o caos”.[9] Isto é religiosidade, imaginário religioso, perfil de “religião” doentia e mal resolvida.

O Brasil tem produzido esse imaginário religioso, então mística, utópico, acrítica, sem problematização, sem reflexão, escapista e imediatista. O seu conteúdo é a sacralização de objetos, gestos e comportamentos ou, tornam sagrados ao que, em essência, não são. Isto se vê na divinização das imagens de esculturas dentro do catolicismo; no interesse financeiro que gera a manipulação da fé, como fogueira santa de Israel, a venda do sal grosso, a vassoura com fins de quebra de maldições ou geração de prosperidade, no contexto do neopentecostalismo; na institucionalização do púlpito como parte mais sagrada do templo, como o “Santo dos Santos”, nas igrejas histórico-reformadas e carismáticas; na manipulação de objetos com fins malignos, dentro do baixo espiritismo e…

“Isto de Brasil” é um misticismo metafísico em que o homem, sujeito de desejos é absorvido, anulando sua personalidade, ou seja, invertendo a relação sujeito x predicado, tornando-se presa de si mesmo, dependendo totalmente do que ele sacralizou, realizando-se no “êxtase”, na transubstanciação da natureza que é o silêncio do pensamento, da crítica, da reflexão.

A saída por cima e com saúde espiritual é ver sempre as coisas comuns como coisas comuns e doar-se tão somente aos símbolos que nasceram no coração de Deus.

 

CITAÇÕES

[1] O Imaginário religioso na construção de subjetividades nômades: O fenômeno da migração religiosa, de Amauri Carlos Ferreira- Dr em Ciências da Religião, Professor da PUC-Minas e Yonne de Souza Grossi- Mestre em Ciência Política, professora da PUC-Minas, disponível no site: http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/yonne-e-amauri.pdf.

[2] ELIADE, M,1972,p.11.

[3] Ibidem.

[4] Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Editora Moderna.

[5] O Imaginário religioso na construção de subjetividades nômades: O fenômeno da migração religiosa, de Amauri Carlos Ferreira – Dr em Ciências da Religião, Professor da PUC-Minas e Yonne de Souza Grossi – Mestre em Ciência Política, professora da PUC-Minas, disponível no site: http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/yonne-e-amauri.pdf.

[6] Para a Fenomenologia de Edmund Husserl e o Idealismo Transcendental de Immanuel Kant o Fenômeno (phainomenon), significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou nossa consciência, ligado à realidade em si, racional em si, inteligível em si, o “noumenon”.

[7] Disponível em: https://conceito.de/simbologia.

[8] Daqui há partes do livro O que é Religião, de Rubem Alves, editora Brasiliense.

[9] Ibidem.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 ALVES, Rubem. O que é Religião. Coleção Primeiros Passos. São Paulo, Loyola.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 2a edição 1993.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Vida Nova, 2000.

FERREIRA, Amauri Carlos (Dr em Ciências da Religião, Professor da PUC-

Minas) e GROSSI, Yonne de Souza (Mestre em Ciência Política, professora da

PUC-Minas). O Imaginário religioso na construção de subjetividades

nômades: O fenômeno da migração religiosa. Disponível no site:

http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/yonne-e-amauri.pdf.

SANTAELA, Lúcia. O que é Semiótica. Coleção Primeiros Passos. São Paulo, Brasiliense.

 

Sobre o Autor

Ivanildo Ferreira é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Congregacional do Recife (STCR). Tem especialização em Língua Grega pelo mesmo Seminário. É Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É Licenciado em Pedagogia por esta mesma instituição (UFPB). É Pastor Congregacional e Coordenador Pedagógico do Seminário Sertanejo de Itaporanga, além de professor nesta e em outras instituições teológicas.