Sertão Teológico

POR UMA ESPIRITUALIDADE CRISTOCÊNTRICA

A centralidade de Cristo na Bíblia é uma verdade admitida em ambos os Testamentos. O que se depreende do texto sagrado é que Ele ocupa o lugar de preeminência no plano redentor de Deus para a humanidade. De foma sintética, o texto de Colossenses 1.14-20 apresenta Cristo como sendo a manifestação visível do Deus invisível, a origem, razão de ser e finalidade de toda a criação, o mantenedor de todas as coisas, o promotor da paz entre Deus e o homem e o meio através do qual Deus reconciliou consigo mesmo “todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus”.

Cristo, portanto, longe de ser apenas um guru religioso, um provocador de sentimentos piedosos ou um desencadeador da consciência religiosa nas pessoas, é apresentado como o ideal espiritual da humanidade, aquele através do qual a verdade se tornou manifesta existencialmente, isto é, em sua própria vida, e conceitualmente, isto é, em seus ensinos. Assim, a vida e o ensino de Cristo refletem a única verdade legítima no que tange à espiritualidade humana. Em outras palavras, a espiritualidade necessária tem que ser, necessariamente, cristocêntrica. Nas palavras do teólogo alemão Horst Georg Pöhlmann: “[…] Jesus entrou em cena com autoridade jamais vista, a saber, a autoridade de Deus, afirmando ter autoridade de se colocar no lugar de Deus, falar a nós e nos trazer salvação […] em relação a Jesus, existem apenas dois comportamentos possíveis: acreditar que Deus nos encontra nele ou pregá-lo na cruz como blasfemo. Não existe uma terceira opção”.

Mas o que se entende por “espiritualidade cristocêntrica”? Por definição, uma espiritualidade cristocêntrica é aquela que acontece em função de Cristo, que brota dele e se volta para Ele. É uma espiritualidade que admite a preeminência de Cristo sobre todas as possibilidades religiosas que se conhecem. É uma espiritualidade que se desdobra a partir da sua Palavra e da sua obra redentora. E tudo isto é apresentado na Bíblia como sendo uma necessidade fundamental de todo homem.

Evidentemente tais afirmações não soam como razoáveis para a mentalidade secularizada de nossos dias, que não admite nenhum tipo de absolutização conceitual ou de personificação de uma verdade que se apresenta como suprema em matéria de religião. E aqui uma espiritualidade cristocêntrica encontra o seu primeiro desafio: o de sustentar as altas reivindicações de Cristo em oposição a um conceito reducionista com relação à sua pessoa.

Desde Hermann Samuel Reimarus, no século XVIII, que definiu Cristo como um messias judeu do tipo político, que visava agregar junto de si seguidores que o proclamassem líder da nação, para então fazer frente à dominação romana, Cristo tem sido subestimado pela erudição liberal. O movimento de busca do Jesus Histórico, que durou cerca de 150 anos, desde Reimarus, caricaturou Cristo de diversas formas, todas elas infinitamente aquém daquilo que os evangelhos e as epístolas afirmam a seu respeito. Com relação a tais definições da erudição liberal, Joachim Jeremias afirmou: “Os racionalistas descrevem Jesus como o pregador moral; os idealistas, como a quitessência do humanismo, os estetas o apontam como o amigo dos pobres e o reformador social, e os inumeráveis pseudocientíficos fazem dele uma figura da ficção”.

Nossa geração herdou tais conceitos. Cristo foi esvaziado de sua dignidade a tal ponto, que admitir sua divindade e supremacia e esperar em suas promessas se constitui, para a nossa geração, numa ofensa. Deste modo, aqueles que querem viver uma espiritualidade cristocêntrica nos dias atuais se exporão, inevitavelmente, à incompreensão e até mesmo ao desdém públicos.

Mas um outro desafio se apresenta àqueles que querem viver segundo Cristo, e este é protagonizado por aqueles que confessam o seu nome, mas que não discernem o conteúdo do seu ensino: o desafio de um tipo utilitarista de espiritualidade, que define sua base teórica a partir da engenhosidade e fantasia de certos líderes religiosos, e não do evangelho. A religião cristã tem sido sistematicamente transformada num grande mercado de ideias e, em alguns casos, de exploração de toda ordem.

É lamentável observarmos o descaso com que a Palavra de Cristo tem sido tratada por alguns que confessam segui-lo. O que se observa é uma substituição dos valores de Cristo pelos ideais humanos; uma promoção da personalidade humana em oposição à glória de Cristo. O dado lamentável é que tal realidade é extremamente apelativa e tem se propagado muito além do que se poderia esperar, uma vez que a promessa de um evangelho fácil e sem autonegação é profundamente atraente àqueles que ainda não entenderam as implicações do que significa seguir a Cristo.

Neste contexto somos desafiados a nos voltarmos para a Palavra de Cristo como único fundamento para a preservação de uma mentalidade cristã, que resiste à tentação de buscar a autonomia humana na definição da verdade. Não se poderá viver uma espiritualidade cristocêntrica se a Palavra de Cristo não for o fundamento das crenças e das ações. Deste modo, somos conclamados a reconhecermos nossa total dependência do evangelho pregado por Jesus e a proibição de interpretarmos este evangelho ao nosso bel prazer.

Portanto, para se viver uma espiritualidade cristocêntrica nos dias atuais, é necessário reconhecer a pessoa de Cristo, não segundo as definições do homem moderno, mas segundo o que a Bíblia nos conta acerca dele, bem como se sujeitar à sua Palavra, considerando-a em sua integralidade e segundo os seus próprios termos. Isto, sem dúvida, se constituirá numa ofensa à mentalidade contemporânea e poderá soar como atitude antiquada e inadequada. Porém, é para isto que Cristo nos chama: para vivermos segundo Ele, por Ele e para Ele, em autonegação e negação de tudo o que conspire contra a sua dignidade, para a glória de Deus.

Sobre o Autor

Alexandre Azevedo graduou-se em teologia no Seminário Juvep e na FTSA (Faculdade Teológica Sul Americana). Formou-se no Curso Livre de Fé e Política na Escola dos Sertões de Fé e Política. Concluiu a capacitação em gestão de escolas teológicas pelo GATE Brasil (Global Associates for Transformational Education). É pós-graduando em Formação Política para Cristãos Leigos no CEFEP-DF e PUC-Rio. É professor de Teologia Sistemática. Atualmente está envolvido na pesquisa sobre o impacto da secularização Pós-moderna sobre o cristianismo no contexto europeu (Alemanha, Gales e Inglaterra) e sul-americano (Brasil) junto ao Movimento Repensar.