Sertão Teológico

EM QUAISQUER CIRCUNSTÂNCIAS, DEUS CUMPRIRÁ O SEU PLANO - UM ESTUDO EM ROMANOS 9

Romanos 9.1-33

1 Em Cristo digo a verdade, não minto (dando-me testemunho a minha consciência no Espírito Santo): 2 Que tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração. 3 Porque eu mesmo poderia desejar ser anátema de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne; 4 Que são israelitas, dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e as alianças, e a lei, e o culto, e as promessas; 5 Dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém. 6 Não que a palavra de Deus haja faltado, porque nem todos os que são de Israel são de Israel; 7 Nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. 8 Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de  Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendência. 9 Porque a palavra da promessa é esta: Por este tempo virei, e Sara terá um filho. 10 E não somente esta, mas também Rebeca, quando concebeu de um, de Isaque, nosso pai; 11 Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), 12 Foi-lhe dito a ela: O maior servirá ao menor. 13 Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. 14 Que diremos pois? Que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma. 15 Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. 16 Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece. 17 Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. 18 Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer. 19 Dir-me-ás então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem tem resistido à sua vontade? 20 Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? 21 Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? 22 E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; 23 Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, 24 Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? 25 Como também diz em Oseias: Chamarei meu povo ao que não era meu povo; e amada à que não era amada. 26 E sucederá que no lugar em que lhes foi dito: Vós não sois meu povo; aí serão chamados filhos do Deus vivo. 27 Também Isaías clama acerca de Israel: Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo. 28 Porque ele completará a obra e abreviá-la-á em justiça; porque o Senhor fará breve a obra sobre a terra. 29 E como antes disse Isaías: Se o Senhor dos Exércitos nos não deixara descendência, teríamos nos tornado como Sodoma, e teríamos sido feitos como Gomorra. 30 Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. 31 Mas Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. 32 Por quê? Porque não foi pela fé, mas como que pelas obras da lei; pois tropeçaram na pedra de tropeço; 33 Como está escrito: Eis que eu ponho em Sião uma pedra de tropeço, e uma rocha de escândalo; e todo aquele que crer nela não será confundido.

INTRODUÇÃO 

Os capítulos 9 a 11 de Romanos formam uma espécie de parênteses na estrutura fundamental da epístola. Chamamos de estrutura fundamental o desdobramento lógico do raciocínio imposto pelo apóstolo Paulo em Romanos. Assim, após ter exposto a crítica situação espiritual de gentios e judeus nos capítulos 1 a 3, de ter estabelecida a base sobre a qual Deus justifica o homem, que é a graça, mediante a fé, e não as obras da lei,  na metade final do capítulo 3 ao capítulo 5, de ter corrigido possíveis distorções licenciosas baseadas numa má interpretação da graça, no capítulo 6, de ter esclarecido o paradoxo entre os resultados práticos da lei de Deus, a lei do pecado e da morte e a lei do Espírito de Vida, nos capítulos 7 e 8, seria natural Paulo passar imediatamente para os capítulos 12 ao 15, que tratam de questões práticas da vida cristã, concluindo com as saudações do capítulo 16.

No entanto, o apóstolo tem razões especiais para incluir uma seção relativa a Israel: é o seu povo, por ele amado; suas atividades missionárias têm-no em vista; gostaria de vê-lo respondendo afirmativamente ao chamado da salvação em Cristo. Como isto não aconteceu em massa, poderia parecer que algo estava dando errado no plano de Deus. Para responder a isto, Paulo desenvolve esta seção, na qual esclarece os motivos por trás dessa aparente contradição.

Na medida em que avança na elucidação dessa questão, Paulo descortina diversos aspectos da particularidade da relação entre Deus e os homens, em face do Seu plano.É assim que somos informados acerca dos “vasos de ira” e dos “vasos de misericórdia”, do “remanescente de Israel”, e da razão de Israel não ter alcançado a justiça que tanto buscava, ao passo que gentios a tinham alcançado.

Todos esses temas, entendidos à luz do seu contexto, trazem clareza sobre a forma como se deve interpretar a dinâmica da história da salvação, o que é absolutamente indispensável para a Igreja de hoje.

I – Uma Nota Pessoal do Amor de Paulo pelos Judeus – Romanos 9.1-5

Paulo começa esta seção com uma nota pessoal de amor pelo seu povo, os judeus: “Em Cristo digo a verdade, não minto (dando-me testemunho a minha consciência no Espírito Santo): que tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração. Porque eu mesmo poderia desejar ser anátema de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne”. Suas palavras nos fazem lembrar de Moisés, em sua intercessão pelos israelitas, quando estes se tornaram idólatras ante o bezerro de ouro: “Assim tornou-se Moisés ao SENHOR, e disse: ora, este povo cometeu grande pecado fazendo para si deuses de ouro. Agora, pois, perdoa o seu pecado; se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito” (Ex. 32:31,32).

Essas palavras de Paulo deixam claro que a suspeita de alguns judeus, de que ele se tornara um traidor de seu povo e de sua tradição, desprezando-os em favor dos gentios, era injusta. Paulo constantemente se deparava com esta suspeita (At. 13.46-49; 18.5-17; 21.17-21, 26-31; 22.17-23). No entanto, a verdade era outra. Seus vínculos étnicos e sua consciência da singularidade da experiência dos judeus com Deus, o levava a sofrer intensamente diante da recusa daqueles em reconhecer o seu Messias. Paulo sabia da contradição que essa recusa representava, pois a expectativa mais natural era a de que os judeus estivessem totalmente abertos para o Messias, quando este se manifestasse. 

Nos versos 4 a 6 do capítulo 9, ele fornece uma série de alegações que comprovam os privilégios dos judeus como povo eleito: “Que são israelitas, dos quais [é] a adoção de filhos, e a glória, e as alianças, e a lei, e o culto, e as promessas; Dos quais [são] os pais, e dos quais [é] Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém”. Com respeito à expressão “dos quais é a adoção de filhos” considere-se que Israel é chamado tanto coletivamente, quanto individualmente, de filho/filhos de Deus (cf. Ex. 4.22,23; Os. 11.1; 1.10). 

Paulo diz também que deles é “a glória”, provavelmente se referindo às experiências do tabernáculo (Ex. 40.34,35), e do templo de Salomão (I Re. 8.10,11), onde a glória representava a presença de Deus entre eles. 

As “alianças” provavelmente se referem às alianças que Deus fez com Abraão (Gn. 15.18; 17.4-8), com Israel (Ex. 24.8; 34.10; Dt. 29.1-29; Dt. 27.2) e com Davi (II Sm. 23.5; Sl. 89.28), além da nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá (Jr. 31.31). 

Além disso, as expressões “e a lei, e o culto, e as promessas”, se referem, respectivamente à lei de Moisés, ao serviço sagrado, prestado conforme as orientações divinas dadas a Moisés, e a todas as promessas de Deus a seu povo, principalmente a promessa messiânica.

Por todas essas razões, a angústia de Paulo em ver a maioria dos israelitas de seus dias no estado de letargia espiritual, se justificava. Sua profunda solidariedade com a sua raça (os judeus) feria sua alma missionária, levando-o a perscrutar as razões para aquele estado de coisas. Suas conclusões, expostas a seguir, se constituem em respostas adequadas para tal dilema.

II – A Rejeição do Messias pelo Israel Nacional não Implica em Fracasso do Plano de Deus – Romanos 9.6-13

Paulo começa a elucidar o problema com a categórica afirmação de que o plano de Deus não falhou (v. 6). Esta afirmação está sustentada pela identificação do modus operandi do plano divino, exposto nos três capítulos nos quais o apóstolo aborda a questão de Israel (capítulos 9 a 11), bem como na alegação de que “nem todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos filhos” (vv. 6b,7). Ele já havia estabelecido os fundamentos desta alegação em 2.28,29 e no capítulo 4, nos quais exalta a interioridade e a fé como sendo marcos indicadores da associação dos homens com o plano de Deus.

Desta forma o apóstolo elucida o dilema e a aparente contradição da rejeição do Israel nacional do seu Messias, exatamente no ponto em que relativiza o elemento étnico e enfatiza o elemento da promessa de Deus, como vemos no verso 8: “Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendência”. Quando olhamos para a argumentação de Paulo no capítulo 4, versos 13 a 25, vemos a associação que ele faz entre a promessa de Deus, a fé e a justiça, apresentando Abraão como exemplo primário daqueles que herdam as promessas pela fé, o qual veio a se tornar pai de todos os que creem. Assim, “os filhos da promessa, na exegese de Paulo, são aqueles que, como Abraão, creem na promessa de Deus e, portanto, são descendentes espirituais de Abraão” (Bruce, p. 156). Fica claro, assim, que o grande problema de Israel foi a incredulidade (cf. 11.20,23).

Para sustentar esse conceito de relativização do Israel étnico em favor do espiritual, Paulo recorre à história da formação do povo em seus primórdios. Sua alegação é a de que a linha condutora de todo o processo de formação do Israel de Deus segue os critérios de Deus, baseados na promessa e na eleição. Os fatos evocados são a afirmação de que a descendência de Abraão seria chamada em Isaque (promessa), e a de que Deus amou a Jacó e odiou a Esaú (eleição). Não se deve entender a palavra “odiou” como uma referência a uma emoção contrária à Esaú, mas apenas como a expressão de que ele não foi o escolhido para ser o continuador da linhagem da promessa de Deus a Abraão, mas sim, Jacó. 

Desta forma, fica claro que Deus conduziu o seu plano com total controle sobre os fatos, de modo que nenhum revés foi capaz de frustrá-lo. Se foi assim no passado, também é assim no presente, é o que Paulo sugere. Por isso, quando uma grande massa de judeus rejeitou a Cristo, um pequeno grupo, um remanescente eleito se tornou a prova de que Deus estava cumprindo o seu plano e realizando sua promessa (Rm. 11.5,7), pois este, ao contrário daqueles, creu, conformando-se com a fé que teve Abraão e tornando-se herdeiros da promessa.

III – A Liberdade da Misericórdia de Deus – Romanos 9.14-18

Paulo conclui a seção de Rm. 9.6-13 com a afirmação de que a promessa de Deus a Abraão com respeito à sua descendência, por determinação divina, seguiu a linhagem de Isaque e Jacó, preterindo outros nomes como Ismael e Esaú. Neste ponto ele enfatiza a total liberdade de Deus em moldar a história pelo critério de sua própria vontade. Deste modo, Ele não pode ser coagido a fazer absolutamente nada que não seja resultado de sua livre decisão. 

Lançando o foco sobre o modo de agir de Deus na escolha dos progenitores do povo de Israel, e tendo já considerado que a escolha de uns significava a desconsideração de outros, Paulo propõe a seguinte questão: “[…] há injustiça da parte de Deus?” (v.14). A resposta é um enfático “não”. Neste momento, ele estabelece a conexão entre a questão levantada e adequadamente respondida, e a total liberdade de Deus no uso de sua misericórdia (vv.15-18). Como ilustração, ele usa os textos de Êx. 33.19 e 9.16. Em ambos os textos Deus demonstra a forma soberana como lida com os seres humanos em sua condição desfavorável diante dele mesmo. Sua misericórdia não é pagamento por mérito e sua justiça penal é justificada diante dos fatos, de modo que, ao julgar a faraó, Ele o faz com a mais absoluta legitimidade, em função da própria injustiça daquele e de todas as suas maldades, previamente praticadas.

Deve-se considerar que toda a corrente argumentativa de Paulo visa elucidar a questão do aparente fracasso do plano de Deus diante da rejeição de Israel do seu Messias. Havia um pressuposto oculto, da parte de Israel, de que Deus tinha obrigações inegociáveis com os israelitas no que tange à salvação, ou seja, em função das promessas, acreditava-se que tão somente observando a legislação, Israel permaneceria num estado favorável de justificação diante de Deus. O que Paulo demonstra, no entanto, é que esta expectativa estava equivocada. Não era esta a forma como Deus salvaria a Israel, e ainda que este tivesse uma magnífica tradição espiritual, fracassaria, inevitavelmente, se não tivesse fé. E foi exatamente isto o que aconteceu, quando desprezaram a justiça pela fé, preferindo confiar em suas próprias obras de justiça (cf. Rm. 10.3).

Neste ponto, fica claro que os pressupostos dos judeus estavam equivocados e que sua compreensão de que Deus não poderia contrariar suas expectativas soteriológicas acabou se constituindo na base teórica de seu fracasso espiritual. Deus não tinha que submeter sua vontade às expectativas judaicas; Ele não era obrigado a justificar os descrentes judeus em nome de sua tradição, ao mesmo tempo em que era livre para aplicar a sua justiça penal, endurecendo-lhes o coração por conta de sua incredulidade. 

Isto fica melhor entendido quando vemos a interpretação, em Mateus 13.15,16, de Isaías 6.9,10. Ao passo que Isaías diz “Então disse ele: vai, e dize a este povo: ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos, nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado”, Mateus diz: “ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis, e, vendo, vereis, mas não percebereis. Porque o coração deste povo está endurecido, e ouviram de mau grado com seus ouvidos, e fecharam seus olhos; para que não vejam com os olhos, e ouçam com os ouvidos, e compreendam com o coração, e se convertam, e eu os cure”.

Uma leitura rápida e descuidada de Isaías pode-nos levar a conclusão de que Deus não queria a conversão de Israel e por isto impossibilitava-lhes a compreensão da palavra do profeta. No entanto, Mateus elucida e corrige esta perspectiva, afirmando que o próprio Israel se indispusera a ouvir a Palavra de Deus, pela dureza do seu próprio coração. O que Deus fez, em ação penal, foi ratificar essa condição nos incrédulos judeus.

IV – Vasos de Ira x Vasos de Misericórdia – Romanos 9.19-26

Alguns verão, nos versos 19 a 26 de Romanos 9, os fundamentos para uma doutrina da dupla predestinação (a ideia de que Deus predestinou uns para a salvação e outros para a perdição). A pergunta do verso 21 (ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?) às vezes é interpretada dessa forma. Neste caso, supõe-se que Paulo estivesse dizendo que Deus, na eternidade, escolheu algumas pessoas para a salvação e outras para a perdição, assegurando-se de que assim se daria necessariamente. Uma forma mais radical desse pensamento afirma que Deus não apenas escolheu, mas criou determinadas pessoas para a salvação e outras para a perdição.

Certamente a figura dos vasos de ira, preparados para a perdição (v.22), não leva o sentido de pessoas criadas para a perdição, mas sim o de que, ao persistirem na desobediência e incredulidade, as pessoas estão se credenciando, cada vez mais, para o juízo ou sendo formatadas para tal. Além disso, Paulo enfatiza que, mesmo em face da persistente obstinação dessas pessoas, Deus ainda retarda, pacientemente, o derramamento do seu juízo. Parece que este retardar do juízo sobre os impenitentes demonstra, por um lado, misericórdia, e, por outro, o acirramento da pena, ocasião em que a ira de Deus será evidenciada. Essa ideia é reforçada por Romanos 2.4,5, que diz: “ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te leva ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus”.

O oposto dos vasos de ira são os vasos de misericórdia (v.23). Paulo os identifica como aqueles que Deus preparou para a glória. Estes são chamados dentre os judeus e os gentios (v.24). Através destes Deus evidencia as riquezas da sua glória. O fato indiscutível aqui é o de que Deus, quando salva, não o faz por necessidade, isto é, por obrigação. A salvação sempre será um ato livre, gracioso e amoroso da parte de Deus. É a isto que se refere a expressão “misericórdia”. 

É conveniente que Paulo destaque aqui o alcance da misericórdia divina, incluindo os gentios, uma vez que ele está desenvolvendo um raciocínio cujo objetivo é demonstrar que a história está acontecendo de acordo com os planos divinos. Assim, quando parece que o plano de Deus falhou, constata-se que o mesmo, na verdade, está se consumando em sua mais perfeita abrangência, de acordo com a vontade de Deus. 

V – O Remanescente de Israel – Romanos 9.27-29

Logo após mencionar os gentios crentes, que tiveram sua condição natural de não-povo-de-Deus mudada para “filhos do Deus vivo” (v.26), Paulo se volta novamente para os judeus, nos versos 27 a 29, conservando a distinção entre a nação e os herdeiros da promessa. Ele cita Isaías 10.22 e 1.9 para ilustrar o que Deus estava fazendo em seus dias, como fizera diversas vezes na história: conservando, em meio à crise espiritual, um remanescente fiel, para conservação do povo. 

Este tema do remanescente será melhor desenvolvido por Paulo em Romanos 11.1-10. Aqui, no entanto, ele usa o conceito para reforçar a ideia, já exposta em Rm. 9.6-13, de que Deus estava conduzindo o seu plano com total controle sobre os fatos. Convém algumas observações sobre os textos de Isaías, usados por Paulo como fundamentação bíblica para seus argumentos.

O contexto de Isaías é de um Israel rebelde, moral e espiritualmente corrupto, alheio à vontade de Deus e profundamente comprometido com uma agenda egoísta, caracterizada por toda sorte de impiedade. Neste contexto, o culto se tornara desprezível, pois se constituíra numa forma meramente estética, exterior de se viver a religião. Assim, Deus levantou Isaías como arauto, para denunciar a maldade do povo e conclamá-lo ao arrependimento e à conversão. Não era vontade de Deus que aquele povo permanecesse nos seus pecados, Por isso, em Isaías 1.16,18 está dito: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal. Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas. Vinde então, e argui-me, diz o SENHOR: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a [branca] lã”.

O que se vê, no entanto, é que Israel não quis ouvir, o que o levou à destruição parcial, apesar de todos os apelos divinos para que se arrependesse. Diante disto, Deus, em graça, preservou um remanescente fiel, representante do povo, para manutenção de sua promessa.

É importante pontuar esses fatos para que se entenda adequadamente o conceito de eleição nessa seção de Romanos 9 a 11. Para que não pareça que o desvio de Israel tenha sido proporcionado pelo próprio Deus, em razão dele ter preferido uns em detrimento dos outros. Não é isto, absolutamente, o que Paulo pretende enfatizar nesses textos.

VI – A Justiça Pela Fé – Romanos 9.30-33

Chegamos, então, aos versos 30 a 33 de Romanos 9. Aqui, Paulo faz um fechamento da temática tratada nos versos 24 a 29, acerca da configuração dos beneficiários da graça de Deus, compostos por judeus e gentios crentes. No verso 30 e 31 ele faz uma afirmação à primeira vista escandalosa: que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram-na, ao passo que Israel, que buscava a justiça, não a alcançou. O motivo disto, esclarece Paulo, é o pressuposto que estava por trás do conceito de obtenção da justiça: no caso de Israel, as obras da lei; no caso dos gentios, a fé.

Paulo já havia tratado, nos capítulos anteriores de Romanos, da relação entre as obras da lei e a fé no processo de obtenção da salvação. Já denunciara a total impossibilidade de alguém se justificar diante de Deus pelas obras da lei. Deixara claro que pela lei vem o conhecimento do pecado, e não somente isto, mas também que ela realça a profunda corrupção do coração humano. Assim, a lei lança luz sobre a nossa condição de pecadores, ao passo que esta condição, em face da lei, se mostra excessivamente maligna. Além disso, Paulo destacara que esta condição é de todos, judeus e gentios, indistintamente (cf. Rm. 3.9-19).

Assim, tendo baseado todas as suas expectativas soteriológicas na observância da lei, os judeus descrentes rejeitaram a única forma possível de salvação, estabelecida por Deus, que é a fé em Cristo. Sua postura os levou a desprezar o Salvador, ignorando-o em sua condição de enviado de Deus como redentor do mundo. Firmaram sua confiança naquilo que era transitório e desconfiaram daquilo que era eterno. Não discerniram o papel da lei, cuja finalidade era a de nos conduzir a Cristo. A lei, portanto, era um meio e não o fim (cf. Gl. 3.23-25). Trocaram o fim pelo meio, e por isso não chegaram ao objetivo. A isto Paulo chamava de tropeçar na pedra de tropeço.

O capítulo 9, portanto, termina com o devido esclarecimento da razão pela qual Israel ficou aquém daquilo que dele se esperava, que era receber alegremente o seu Messias Salvador. Sua percepção da história da salvação era míope, por conta de sua equivocada exegese do Antigo Testamento, particularmente no que dizia respeito ao papel da lei. Com isto, o apóstolo faz uma conclusão adequada do problema levantado no início do capítulo, acerca de se a palavra de Deus tinha ou não falhado.

CONCLUSÃO

Vimos que apesar de toda a sensibilidade étnica de Paulo, manifestada por sua profunda tristeza pela dureza do coração do seu povo, ele não podia deixar de reconhecer que o fracasso espiritual de Israel se justificava, apenas, por sua própria postura diante da oferta da graça. Israel tropeçou na pedra de tropeço, e sua queda foi inevitável. 

Apesar disso, é incorreto afirmar que o plano de Deus falhou, por não ter ocorrido uma salvação nacional de Israel quando do aparecimento do Messias. Paulo deixou claro que os critérios divinos não correspondem, necessariamente, às expectativas humanas, pois Deus tem a sua própria maneira de cumprir o seu plano, e Ele assim o fez, é o que garante Paulo.

A conclusão de Paulo, portanto, é a de que o plano de Deus estava se realizando em seus dias, sem correr nenhum risco de fracassar, isto porque Ele, em todo momento, estava cumprindo os seus propósitos, apesar da incredulidade de Israel.

Ao concluirmos o comentário do capítulo 9 de Romanos, queremos esclarecer que nossa abordagem foi exegética, e não devocional. Nos preocupamos em tentar perceber a dinâmica do pensamento paulino acerca dos temas desenvolvidos neste capítulo. Por isso, não fizemos aplicações práticas para os nossos dias. 

Esperamos, no entanto, que a devida compreensão do assunto leve a resultados práticos, em termos de gratidão a Deus por sua sabedoria, graça e misericórdia, pelas quais nos alcançou, por meio de Cristo.

Que permaneça a consciência de que Deus é o Senhor da história, a quem nada surpreende e cujos planos não podem ser frustrados, e que essa consciência nos dê, a cada dia, mais segurança e firmeza em nossa caminhada de fé.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRINGTON, French L.; STRONSTAD, Roger (Org.). Comentário Bíblico Pentecostal. Rio de Janeiro. CPAD, 2003. 

BRUCE, F. F. (Ed.). Comentário Bíblico NVI. São Paulo. Vida, 2008. 

BRUCE, F. F. Romanos – Introdução e Comentário. São Paulo. Vida Nova, 1979.

CARSON, D. A. et al. Comentário Bíblico Vida Nova. São Paulo. Vida Nova, 2009. 

STOTT, John R. W. A Mensagem de Romanos. São Paulo. ABU, 2000.

Bíblia agrada. Versão ACF 2007. The Word.

Sobre o Autor

Alexandre Azevedo graduou-se em teologia no Seminário Juvep e na FTSA (Faculdade Teológica Sul Americana). Formou-se no Curso Livre de Fé e Política na Escola dos Sertões de Fé e Política. Concluiu a capacitação em gestão de escolas teológicas pelo GATE Brasil (Global Associates for Transformational Education). É pós-graduando em Formação Política para Cristãos Leigos no CEFEP-DF e PUC-Rio. É professor de Teologia Sistemática. Atualmente está envolvido na pesquisa sobre o impacto da secularização Pós-moderna sobre o cristianismo no contexto europeu (Alemanha, Gales e Inglaterra) e sul-americano (Brasil) junto ao Movimento Repensar.